quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Todos às compras

Rui anda a namorar um relógio caro. Ana vai ela própria fazer cachecóis e bolsas para oferecer. O casal Lima comprou uma televisão. É Natal e cada português chega à noite da consoada com uma média de 15 embrulhos para distribuir. Em tempo de crise a tendência é comprar coisas úteis.
Por Ana Henriques


Cortar nos gastos por causa da crise? Nem sempre. "Lá em casa não se faz muito isso, Natal é Natal. Talvez noutras épocas do ano..." Rita Mendes, de 19 anos, ainda não fixou o nome da escola do Lumiar, em Lisboa, onde começou este ano lectivo a frequentar o curso de Ciências Aeronáuticas. Mas na ponta da língua tem os nomes dos modelos das malas da Louis Vuitton que ela e a mãe hão-de receber este Natal, a mil e dois mil euros o exemplar, para depois emprestar uma à outra. O irmão não fica a perder: "Entre os jogos para a Playstation e um computador portátil novo leva sempre muitos presentes, para compensar as malas."
Até agora, a estudante gastou 500 euros em ofertas para os amigos: essencialmente perfumes e acessórios, como um cinto. "E ainda estou a meio das compras", diz. "É um bocadinho de dinheiro de mais..." O grande armário lá de casa repleto de modelos menos recentes da Vuitton e de outras marcas conceituadas não a demove: são mesmo duas malas com o monograma de luxo que hão-de aparecer no sapatinho. E das genuínas, que fazem corar de vergonha as suas primas falsificadas.
Estima-se que este ano cada português vá desembolsar, em média, 390 euros com prendas de Natal. Muito menos do que Rita gastará. Muito mais do que o que Fátima Silva, 64 anos, conta gastar. Hoje não são malas que esta vendedora ambulante leva consigo. Enfiadas dentro de um saco de plástico negro como as roupas que traz vestidas da cabeça aos pés, as camisolas que acabou de comprar aos chineses do Martim Moniz para revender nas ruas de Queluz não fazem vista nenhuma. As cores fora de moda também não ajudam, mas por seis ou sete euros a peça não se pode pedir mais.
Talvez num embrulho bonito consigam brilhar na noite de Natal. Ou talvez vão parar ao fundo do armário de uma qualquer adolescente cuja tia pensa que Stradivarius - nome de uma cadeia de lojas de pronto-a-vestir - é apenas a marca de um famoso violino. A Fátima tanto se lhe dá: quer é despachar a mercadoria antes que chegue a polícia, que, diz, não tem sido meiga com os vendedores ambulantes.
Este não é o seu Natal. O seu vai ser passado sem prendas. Os 30 euros do rendimento mínimo somados aos 150 da pensão que recebe por conta da morte do marido não esticam. "Se tivesse dinheiro, comprava uma prendinha a cada neto", diz. Depois percebe que está a sonhar alto de mais, com a quantidade de descendentes que deixa neste mundo teria de gastar uma fortuna em presentes. E emenda: "À minha neta de seis anos comprava-lhe umas botinhas. E aos rapazes, uns carrinhos." E segue para casa quase a correr.

Excessivo?

Por esta altura Rui Pinheira, de 29 anos, ainda não se decidiu sobre a prenda da namorada. O mostrador do Omega de 2350 euros que o crítico de arte apreciou na joalharia da Avenida da Liberdade parece-lhe excessivo. Ou será que agora se usa assim tão grande? "Vou ter que sondar a minha namorada", conclui. Depois decidirá se deve esperar pelo lançamento de um modelo de menores dimensões.
Já comprou os presentes quase todos, mas deixou os mais importantes para o fim: os dos pais. Que podem custar tanto como o Omega - ou não. Roupa não oferecerá de certeza: "As mulheres compram-na todos os dias..."
Por muito que os mais recentes inquéritos digam que os portugueses vão gastar menos em ofertas do que em 2008 - menos 15 euros, segundo o estudo Xmas Survey, da consultora Deloitte - há quem compre tanto como sempre. E quem garanta que a poupança começou há muitos natais. Que o diga Piedade Santos, 46 anos num rosto sem traços de maquilhagem a disfarçar a passagem dos anos. "Tenho muita pena, mas aos adultos é um beijinho, um abraço e pronto. Nem eles me dão nada a mim, nem eu lhes dou a eles", conta, enquanto percorre com a filha os corredores do novíssimo centro comercial Dolce Vita Tejo, nos subúrbios da Amadora.
À disciplina férrea combinada com a família há três anos para lidar com um salário de auxiliar de acção educativa de pouco mais de 500 euros só escapam as crianças da família - "tenta-se não falhar" - e a filha adolescente. Mesmo assim, impera o pragmatismo: "Se ela precisa de umas botas ou de um casaco, dizemos: "Olha, já é prenda de Natal." Perde-se um bocado a graça de abrir as prendas, mas pronto."
Os portugueses compram, em média, 15 prendas por Natal, a 30 euros cada uma. Paula Quintão, uma empregada bancária precocemente reformada, gastará acima da média. Não há grande volta a dar-lhe, por mais que aqui, junto ao Bairro Alto, até possa encontrar um ou outro gadget original sem se arruinar. Conta chegar à noite da consoada com 50 prendas para oferecer. "Quanto vou gastar ao todo? Seguramente uns mil euros, é um escândalo. Já houve anos em que terei gasto mais." Com a família? "Às vezes acho que até é com os amigos."
Segundo a Deloitte, quando é preciso cortar nas lembranças de Natal os colegas de trabalho são os primeiros a sofrer as consequências. Seguem-se os amigos. Deixar os mais pequenos sem brinquedos só em último caso. Isso mesmo diz Adriano Motica, um romeno desempregado de 21 anos: seja lá o que conseguir comprar, a prenda mais cara irá para a pequenita que passeia num carrinho de bebé na Baixa. No ano passado era diferente, tinha trabalho.
"Em 2008, quando estava em Espanha a montar tectos falsos, ganhava melhor do que aqui", constata por seu turno Adsergion Silva, oito anos dos 32 que leva de vida passados em Portugal, vindo de Minas Gerais. Das três ou quatro prendas obrigatórias que vai distribuir pelos mais chegados nenhuma deverá calhar à companheira. "Merecer ela merece. Mas não sei se o dinheiro vai chegar... Gostava de lhe dar um perfume."
Apesar de integrarem a lista das prendas mais requisitadas nesta altura, as fragrâncias não estão no topo. Em Portugal, tal como na maioria da Europa, os livros constituem a oferta mais popular, seguidos do vestuário e dos discos. Alexandra Pericão, com um cargo de chefia numa empresa de resíduos sólidos urbanos, recusa-se a comprá-los de empreitada. Essas e outras prendas, vai-as acumulando ao longo do ano, com tempo, para depois distribuir no Natal: "Consigo preços melhores e coisas que agradam mais às pessoas."

Prendas para os vizinhos

Escolhe criteriosamente cada objecto, ao todo não mais de uma dezena, entre família e amigos: "Isto não é uma coisa banal relacionada com o consumismo." Também não é só por questões de poupança que Ana Teixeira, uma estudante de Belas-Artes de 22 anos, tenciona fabricar parte das prendas que quer dar - um cachecol, uma bolsa, um quadro... "Gosto mais do resultado final", explica, enquanto dá uma vista de olhos aos gadgets da loja do Bairro Alto.
Doze por cento dos portugueses não comprarão prendas para si próprios, ao contrário do que haviam feito no ano passado. Não é o que se passa com o casal Lima. "Esta é cá para os bebés", dizem, satisfeitos, a apontar para si e para o enorme televisor que mal lhes cabe no carrinho de compras que empurram no Dolce Vita Tejo. Por 650 euros, o casal de reformados comprou mais um entretém para os dias de chuva, que se vai juntar às várias outras televisões que já tem em casa, em Porto Salvo. "Os gastos vão ser os mesmos do ano passado", referem: do pouco ao muito, dependendo "de como cada pessoa se portou ao longo do ano". Os vizinhos de mais idade não serão esquecidos nesta espécie de ajuste de contas. Afinal, são eles quem vemos no dia-a-dia, às vezes mais do que à família. E toda a gente gosta de um miminho.
Eduardo Lemos também se vai lembrar da vizinhança quando trouxer da terra, Tondela, várias caixas de dióspiros e uns garrafõezinhos de branco e de tinto, tudo produção própria. Da Brandoa, onde mora, o viúvo levará bacalhau, lençóis e cobertores, para oferecer a uns primos na província. Quando era gerente de casas de prestígio da capital, como o café Colombo, convivia com outras gentes: "As pessoas do jet-set, a Cinha, a Maria Barroso..." Não é que agora, que já não precisa de se barbear todos os dias, viva mal, mas os euros já estão todos destinados: para um dos três netos, uma adolescente que anda num coro em Algés, tem de ser uma guitarra portuguesa, e tanto ela como os outros hão-de receber roupa. A rapariga tem de andar bem posta, que já arranjou namoro, como contou ao avô em segredo. "Vou gastar alguns 400 euros..."
Por cá ainda não pegou a moda adoptada por espanhóis, italianos, romenos e eslovacos de fazer as compras depois do 25 de Dezembro, para aproveitar os saldos. A tendência é oferecer coisas úteis. O conceito de utilidade é que varia muito, consoante quem o aplica. Para o crítico de arte, o relógio caro insere-se nessa categoria. Outros acham que nada como uns trapos para fazer alguém feliz, nem que seja nos breves segundos que o papel colorido demora a desembaraçar-se dos laçarotes. O Natal chegou para todos, mesmo para os que acreditam que a crise está para durar.
Fonte: Jornal Público

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