quarta-feira, 15 de julho de 2009

Quem põe os cornos a quem?

Um político pode mentir com estrépito e continuar a ser considerado um grande estadista. As mentiras, bem enroladas em conversa fiada e estados de alma, comovem o povo e, demasiadas vezes, anestesiam os próprios jornalistas. As contas variam com quem as conta, sem que a comunicação social mostre a verdade dos factos, ou seja, as facturas.
O país parece demasiado velho para ter memória, ou demasiado esperto para se lembrar de alguma coisa - como Dias Loureiro, vive em surpresa e ingenuidade, artes mais compensatórias do que as do trabalho e da honestidade.
Quando surgem documentos contraditórios com as afirmações de um político, o visado sacode a água do capote dizendo que, mesmo que o papel esteja assinado por si, a culpa é dos que vieram antes dele. O enxotar das responsabilidades para os outros é a causa principal do atraso português e aquilo que trava a força de qualquer reforma: quando se aponta o que está por fazer ou o que foi mal feito, o responsável lança as actas da História à cabeça de quem aponta, para explicar que não pôde fazer nada, que o mal vem de trás (ou de cima, ou de baixo), que não teve condições - pois se nem o Rei D. Sebastião ou Maria João Pires tiveram condições...
Só temos memória quando se trata de atirar as culpas para os outros. Foi o que fez Manuela Ferreira Leite em relação à venda da rede de cobre à PT - disse que o negócio, que agora considera ruinoso, foi decidido pelo Governo anterior. Mas não explica por que razão fechou e assinou essa venda, enquanto ministra das Finanças. Igualmente incompreensível é o salto epistemológico que a conduziu a escolher Santana Lopes como candidato à Câmara de Lisboa, depois de ter dito dele o que nem Deus diz do Diabo. Se isto é "política de verdade", eu prefiro a outra.
Certos políticos têm prerrogativas que os outros não têm: Alberto João Jardim, por exemplo, pode insultar alegremente quem lhe apetecer, a começar pelo Presidente da República, que nada acontece. Na Assembleia da República, os deputados podem injuriar-se verbalmente como muito bem querem e lhes apetece, de mentiroso para baixo. Já lá vi doutos senhores mandarem outros a todas as partes do mundo, incluindo as mais íntimas e as mais sujas (o paralelismo inconsciente entre umas e outras é, aliás, eloquente).
O que não se pode fazer, fiquei agora a saber, é um gesto considerado feio. Se, em vez dos chifres de um touro, o ministro da Economia tivesse mimado umas orelhas de burro, justificar-se-ia na mesma a sua demissão? E se, em vez de orelhas de burro, tivessem sido asas de anjo? - mais difíceis de mimar, é certo. O que nos ofende nos bois ou nos touros? Confesso que nem sequer percebi se a intenção de Manuel Pinho foi a de mostrar que tinha posto os cornos ao PCP, por ter conseguido pôr as minas de Aljustrel a trabalhar, ou a de acusar o PCP de marrar sempre no mesmo.
A ideia de pôr os cornos é um bocadinho arcaica, porque as vacas não têm cornos - o que não significa que umas não dêem mais leite do que as outras. Mas espanta-me que a acção política possa ser afectada deste modo por um gesto tão infeliz quanto infantil. Manuel Pinho não devia ter perdido a cabeça; mas qual de nós não teve um momento em que perdeu a cabeça, por se sentir farto de trabalhar e injustiçado? Só os que não se esforçam nem se empenham poderão atirar a primeira pedra - por isso, aliás, vivemos num país de apedrejadores.
Não tenho pena de Manuel Pinho: Joe Berardo ofereceu-lhe já um posto na administração da sua Fundação, e os trabalhadores das empresas que ele conseguiu safar da falência prestaram-lhe as suas homenagens, bem como os responsáveis das associações empresariais. Não terá sido um ministro perfeito - a ideia peregrina do Allgarve e os dinheiros nela gastos mancharam o bom trabalho realizado na recuperação empresarial, no plano tecnológico e no plano energético. Mas esse trabalho existe. Na véspera da sua demissão, Pinho elencava na SIC Notícias a lista de medidas tomadas para apoiar as pequenas e médias empresas, lembrando que toda aquela lista seria rasgada por Manuela Ferreira Leite, como ela própria afirmou, caso fosse eleita.
A segunda grande causa do atraso português é precisamente essa: os governos chegam ao poder e tratam de rasgar tudo o que vem de trás - muitas vezes até mudam o nome dos ministérios e das instituições públicas, o que representa um aumento da burocracia (mudança de leis internas) e um gasto desnecessário em papel, design e vidro. Que um par de cornos seja mais importante do que o trabalho em curso, isso é que trama o país.


Fonte: Inês Pedrosa, Expresso - 15:07:2009

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