quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Mundo passou o limiar dos mil milhões de esfomeados

Amanhã é Dia Mundial da Alimentação,
uma data que celebra um bem escasso
para um sexto da humanidade.

É mais um número, desta vez redondo: mil milhões de pessoas no planeta têm fome, mais nove por cento do que no ano passado. Visto em perspectiva, quase um sexto da população mundial. Resultado da crise? Sim, sem dúvida. Mas não só. É sobretudo resultado do fracasso das intenções mil vezes anunciadas, mas que falham por nunca alcançarem o terreno e resolverem o básico - erguer ou reerguer a agricultura em inúmeras partes do mundo.
A contabilidade era esperada. Segundo o relatório sobre a insegurança alimentar mundial, da Organização da ONU para a Agricultura e Alimentação (FAO) e do Programa Alimentar Mundial (PAM), 1,02 mil milhões de pessoas têm fome em 2009. A curva tem sido ascendente nos últimos dez anos, depois de ter decrescido na década de 80 e princípio da de 90. Já se ultrapassou, em termos absolutos, os números da fome de 1970, quando as campainhas soaram e se deu a chamada "revolução verde" que pôs a agricultura no centro das soluções.
Mas, a partir de meados da década de 90, o investimento na agricultura começa a declinar. Em 1970, 20 por cento da ajuda ao desenvolvimento ia para este sector. Nos últimos anos, desceu abaixo dos cinco por cento.
"Não se resolve o problema da fome do mundo sem estruturas agrícolas", não tem dúvidas Manuel Correia, presidente do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento. E, em muitos países, estas estão destruídas, são inexistentes ou estão desfasadas das necessidades.
Mas como voltar a pôr a tónica na agricultura? Muitos acreditam que o problema só se resolve a nível doméstico. Dizem-no com base nas estatísticas do comércio internacional, já que apenas 20 por cento do que é produzido nos diferentes países é vendido ao exterior, 80 por cento é autoconsumo. A solução para o problema não repousa, assim, no comércio livre, embora este possa representar o seu papel, defendem.
Pelo contrário. Num cenário de crise económica como a actual, a dependência das importações ainda condena mais os pobres à míngua, salienta a FAO. Sobretudo porque muitos dos que passam fome estão nas cidades e esses dependem mais do mercado mundial do que do doméstico.
Regresso à agricultura
Depois da chamada "crise alimentar", que levou à alta dos preços das matérias-primas em 2007, o mundo percebeu que a ajuda ao desenvolvimento tem de voltar a passar pela agricultura. Salientaram-se as mais-valias da investigação e tecnologia, a urgência de infra-estruturas nos países mais pobres - desde as agrícolas às vias de comunicação para facilitar o escoamento dos produtos -, a necessidade premente de apoios, sobretudo aos pequenos produtores. Foram prometidos mas tardam em chegar, lembra também a FAO.
Mas quem está no terreno olha para estas intenções com cautela. "Neste debate tem de se envolver os pobres, os agricultores, aqueles para quem os projectos se destinam", salienta Manuel Correia. Porque cada país é um país, cada aldeia é uma aldeia. Têm culturas próprias, hábitos enraizados e de pouco adianta tentar impor um modelo agrícola, se as populações nem sequer o compreenderem.
Há outro dado importante: o aumento demográfico. Embora este tenha desacelerado, o certo é que continua e em 2050 estarão 9,1 mil milhões de pessoas sobre a Terra quando actualmente estão 6,8.
Na busca de soluções para aumentar a produtividade das terras e alimentar uma população crescente, há que ter em conta outros factores incontornáveis: a necessidade de terras e água - que escasseiam - e o combate às alterações climáticas, que não admite soluções que aumentem a produção de gases com efeito de estufa (como alguns químicos agrícolas, a desflorestação para libertar terras ou a pecuária intensiva).
Se esta equação já não era fácil, a crise veio piorar ainda mais a situação, pondo mais a nu a fragilidade dos sistemas de segurança alimentar do planeta. Mesmo os casos de sucesso - América Latina e Caraíbas -, que tinham conseguido estancar o crescimento do número de pessoas com fome, acabaram por ser afectados.
Até porque esta é uma crise diferente, salienta a FAO. Atinge várias partes do mundo simultaneamente, reduzindo a capacidade de resposta. Surge a coroar a crise alimentar, que tinha atingido com violência os mais frágeis, deixando-os sem defesas para novos embates. E, num mundo cada vez mais globalizado, os países em desenvolvimento ficaram mais vulneráveis às alterações dos mercados.
Nesta turbulência sucumbem milhões, cada vez mais enredados numa espiral de pobreza. A passagem da barreira dos mil milhões é apenas mais um marco numérico que talvez sirva para abanar as consciências políticas, esperam as agências das Nações Unidas, que todos os dias lembram que as promessas estão por cumprir e que o apoio ao desenvolvimento é cada vez mais escasso.
Por Ana Fernandes
Edição de 15 de Outubro de 2009 do jornal Público.

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