sábado, 16 de maio de 2009

O drama de ser padastro

O que é um padrasto? O pai de um filho que não é seu. O novo marido que a mãe escolheu. O homem que tem de gostar das crianças com quem vai viver e muitas vezes não pode viver com os seus próprios filhos


"Os homens não falam destas coisas". A afirmação é de um professor universitário de 53 anos, padrasto há oito e pai há 27. Jorge Lampreia faz parte de uma imensa multidão. Segundo José Gameiro, psiquiatra especializado em casais e novas famílias, 50% das famílias portuguesas passaram por uma separação conjugal. Muitas delas recompõem-se, dando origem a novos modelos parentais.

A grande questão para os padrastos é ter de lidar com uma realidade difícil: educar filhos que não são seus e, muitas vezes, ver os seus próprios filhos serem educados por outros homens. Embora digam que este não é um assunto de conversas masculinas, a verdade é que os três padrastos que o Expresso ouviu não tiveram pudor em falar, na primeira pessoa, da intimidade da sua relação com os enteados.

A importância deste grupo social é tal que começam a surgir estudos sobre a realidade dos padrastos portugueses. Até há algumas décadas, eles eram, na maioria, a consequência da morte do pai biológico. Uma figura distante que sustentava a família. "Era o padrinho ou o tio", como explica José Gameiro.

A novidade é que, desde os divórcios, os padrastos passaram a ter que competir com a imagem de um pai vivo. Qual é o papel do padrasto? Que espaço a mulher lhe reserva na família? A quem cabe manter a autoridade? Susana Atalaia, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, está a concluir um estudo sobre o lugar do padrasto no quotidiano familiar. "Os padrastos fazem depender os seus papéis da atitude do pai biológico. Se não houver concorrência, melhor", conclui o trabalho.

Tudo porque, quando não há laços biológicos que legitimem a relação, alguns homens sentem-se fragilizados na sua masculinidade. "A figura masculina está associada à autoridade, que, neste caso, é delegada", afirma Susana Atalaia. Conclusão confirmada pelos três padrastos retratados. José Gameiro reforça a tese. "A pior coisa que se pode dizer a um padrasto é: 'Não és meu pai'".

João Miguel, 50 anos, advogado

"Não sei explicar porque gostei deles, mas quando um homem quer conquistar uma mulher tem de conquistar os filhos. Fui padrasto aos 20 anos. A Catarina teria uns seis, o Ricardo, quatro.

Sempre reivindiquei a minha autoridade, mas é indispensável contar com a solidariedade feminina e a minha mulher acreditou em mim. Perceberam desde o início que a lógica da autoridade não é despida de sentimentos. Eu gostava deles, brincava, levava-os ao médico, acompanhava-os como qualquer pai.

Nos primeiros anos, os dias seguintes aos fins-de-semana com o pai eram terríveis. Era a guerra. Se o confronto se tivesse prolongado, não teria aguentado. A dada altura tive uma proposta para ir para o estrangeiro. Ponderámos também que seria uma boa maneira de termos um bocado de paz. Eles passaram a vir só no Verão.

Nunca me trataram por pai. Lembro-me de terem perguntado ao Ricardo, já adolescente, quem era o pai, e ele ter dado o meu nome. Tive algumas 'tricas' com a Catarina. Nunca houve rupturas.

Quando voltaram para Portugal, para estudar na universidade, houve uma reaproximação ao pai. Hoje fazem coisas juntos. Acho muito bem. Durante o crescimento tiveram o azar de não terem tido dois pais. Houve um padrasto presente e um pai ausente. Cometi a injustiça de os confrontar com isso.

Arrependo-me. Aquela frase: 'Se te chateia estar aqui podes ir viver com o teu pai', eu disse-a.

Quando a nossa filha nasceu, a relação não se alterou. Sempre tive o cuidado de ter com todos a mesma medida. Hoje, a Catarina já tem filhos. Tratam-me por avô. Digo que sou 'avô-afectivo'.

Não posso dizer que o amor que sinto pelos meus enteados é paternal. A relação de sangue marca, mas pode gostar-se de forma muito semelhante. Também não gostamos dos filhos biológicos da mesma maneira. Talvez de meu, tenham herdado boa parte dos valores, uma certa maneira de olhar a vida... Mas não têm o meu sangue. Isso nunca se poderá alterar. Tenho pena que não sejam meus filhos. Odeio a palavra padrasto."



Juntos desde que Flávia tem três anos, Jorge Cândido nunca ouviua frase-símbolo da relação entre padrastos e enteados: "Não és meu pai"

Expostos à partida, estes homens sabem que precisam entrar na relação conquistando a afeição dos enteados, o que nem sempre é fácil. "Há o mito da família unida - 'finalmente isto vai correr tudo muito bem' - e pensam logo uma coisa delirante que é: 'estes miúdos que não me conhecem de lado nenhum vão-me adorar'. E muitas vezes são postos no lugar pelos enteados", explica o psiquiatra. O mais ingrato desta situação dúbia é que o padrasto tem de gostar dos enteados, embora estes não tenham de gostar dele.

Um dos problemas enfrentados é que "há pouca história destas novas famílias e, por isso, não há ainda modelos alternativos disponíveis", diz Gameiro. Cabe assim às mulheres decidirem qual o espaço de actuação do padrasto. "Num primeiro tempo, ela aguenta. As relações são muito tensas no início. Depois elas têm de optar quem vão defender e defendem sempre os filhos. Há perigo de ruptura das relações conjugais", conclui.

Nestes contextos, a relação entre padrastos e enteados depende sempre de factores externos. Além da mãe, cabe sempre ao pai biológico determinar até onde o padrasto consegue ir. "A adaptação é mais fácil quando o lugar do pai biológico está vago, não há confronto. Mesmo que esteja vivo. Nestas situações, o padrasto assume-se e ocupa o espaço", afirma Susana Atalaia porque "mais do que ocupar um lugar deixado vago pelo pai, nos tempos que correm, o principal desafio lançado ao padrasto é o de construir o seu próprio lugar na nova família".

Jorge Cândido, 49 anos, empresário

Se a Flávia fosse minha filha biológica, teria sido tudo muito diferente. Tenho um filho de 26 anos. A Flávia tem quase 17 anos. Vive comigo desde os três. O pai dela sempre foi ausente. Nunca pagou a pensão e depois de ter tido outra filha afastou-se ainda mais. Às vezes ele telefona e ela pede-me para dizer que não está. Gostei de ter uma menina como enteada.

Trabalho muito, nunca janto em casa. Tenho uma pequena empresa de tratamento de águas. Gosto de jogar futebol e de beber umas cervejas com os amigos. Ela é mais parecida comigo do que o meu filho. Fala alto, não guarda nada. Pode ser da personalidade, mas também pode ser da convivência comigo.

Nunca dei uma palmada à Flávia nem ao meu filho. Sempre soube que seria uma pessoa estranha e fui entrando devagarinho. Ela nunca me rejeitou, mas houve alturas em que me senti posto de parte.

A frase 'você não é o meu pai' nunca me foi dita. A mãe da Flávia separou-se quando tinha 25 anos e assumiu a filha sozinha. Para ela, era um desafio provar que podia educar a miúda. O nível de vida delas não depende de mim. No Dia do Pai, a Flávia fazia sempre um presente para o pai e outro para mim. Depois deixou de fazer para o pai. Ainda hoje, não se esquece de pedir dinheiro à mãe para comprar uma prenda para mim. Ser padrasto é muito diferente de ser pai biológico. Gosto muito da Flávia, mas é diferente do que sinto pelo meu filho. Se calhar se tivesse ficado com ela quando era bebé... acho que mesmo assim seria diferente.

A Flávia tem muita cumplicidade com a mãe, mas muitas vezes é minha a palavra que conta sobre as saídas dela. A mãe diz: 'Vai falar com o pai'. Chama-me pai. Sempre fizemos tudo a três".



Jorge Lampreia no quarto das enteadas, que preferiram não se deixar fotografar. Este professor não consegue explicar o que é ser padrasto e diz que nunca tentou competir com o pai biológico

A nova tendência é que as famílias recompostas organizem o seu quotidiano entre duas casas. O modelo da guarda conjunta em regime de residência alternada, introduzido há três anos na legislação portuguesa, prevê que as crianças passem o mesmo tempo com o pai e com a mãe. Apesar de estes casos representarem ainda um número residual, nos últimos anos, esta prática tem vindo a ser cada vez mais experimentada, sobretudo nos meios urbanos.

A dificuldade, contudo, é que "se as coisas não estão bem conjugadas, pode criar-se uma dupla vida em que as mães se organizam com os seus filhos e o padrasto não interfere e, quando ficam sozinhos, vivem novamente uma situação de namoro", explica Gameiro. Susana Atalaia concorda: "Cria-se uma parentalidade paralela, em que a mãe assume sozinha as responsabilidades dos filhos ou, na melhor das hipóteses, reparte-as com os ex-companheiros".

Por resolver ainda está o aspecto legal que suporta a figura do padrasto. "A invisibilidade destas figuras parentais é uma realidade na generalidade dos países ocidentais. O sistema de parentesco ocidental apenas permite a existência de um pai e de uma mãe para cada criança", explica a investigadora do ICS. O padrasto é, assim, o elo mais fraco.

Também José Gameiro, pela sua prática de consultório, é a favor de uma alteração legislativa que reforce as garantias do padrasto. "Não sei como seria o modelo. Há padrastos que criaram aquelas crianças desde pequenos e, se ao fim de alguns anos se separam das mães, podem nunca mais voltar a vê-los". O psiquiatra diz, contudo, que quando pergunta aos padrastos se esta situação se colocasse se gostariam de voltar a encontrar regularmente os seus enteados a resposta é, em geral, "não".

Jorge Lampreia, 53 anos, professor universitário

"As minhas filhas foram apanhadas de surpresa pela separação. Um dia anunciei: 'amanhã saio de casa'. Foi em Abril de 2001. A Maria do Mar tinha 19 anos, a Violeta 16. Quase um ano depois, fui viver com a minha actual mulher, que tinha também duas filhas: a Maria Ana, com 10 anos e a Beatriz com seis. Houve três episódios difíceis com a minha enteada mais velha. Ela rejeitava-me, havia gritos e choro. A minha reacção foi sempre a mesma: sair de cena.

O que me deixa feliz é pensar que consegui com as minhas enteadas o mesmo que tinha conseguido com as minhas filhas: proporcionar-lhes uma ambiência solta e desanuviada. Gosto que tenham liberdade para se fechar no quarto ou verem o 'Conta-me como foi' em família, sem sentir que têm de cumprir papéis.

A minha enteada mais velha pergunta à minha filha Maria do Mar, porque é que gosta dela e da irmã. A minha filha responde que elas não têm culpa de nada e que, na separação, elas foram o que de mais positivo lhes aconteceu. Foi mais difícil estabelecerem laços com a minha mulher: a mais nova nem a cumprimentava, mas nas primeiras férias grandes, já estávamos todos juntos em Sesimbra.

Nunca ouvi a frase sacramental: 'não é o meu pai'. Mas, se me perguntam o que é ser padrasto, não sei responder. Nunca me passou pela cabeça entrar em discussões sobre quem é melhor pai, eu ou o biológico. Não tenho de substituir ninguém. Houve uma vez em que fui desautorizado pelo pai sobre uma decisão conjunta entre as duas famílias. Cheguei a ficar com febre. Avisei a minha enteada que não se podia repetir. Não se repetiu. Podia ter corrido mal. Fui duro com ela. Disse-lhe que nunca tinha passado por uma situação semelhante com as minhas filhas.

O quotidiano é feito de bom senso. É só olhar para elas e zzz, para um lado, zzz, para o outro e ir direccionando. Sou um homem de sorte. Não me esforço para que elas gostem de mim. Se hoje me separasse da minha actual mulher ia ter de encontrar uma forma de continuar a vê-las. Neste momento, a nossa relação é muito profunda".

Texto publicado na edição do Expresso de 16 de Maio de 2009

Sem comentários:

Enviar um comentário