sábado, 30 de maio de 2009

Também sobre Quique (e como em Portugal as homenagens são sempre contra alguém)


Pronto. Terminou em glória para o Benfica o campeonato de 2008/ 2009. Pouco ou nenhum significado teve o terceiro lugar da tabela e, bondosamente, logo se enterraram as alegadas desilusões da temporada porque, nos segundos finais da longa prova, foi proporcionada ao público do Estádio da Luz a alegria suprema, o golpe místico, a epifania do novo século.
Pedro Mantorras entrou em campo a quinze minutos do fim do jogo com o Belenenses quando o público já se preparava para abandonar o recinto encetando um regresso a casa (de forte teor maledicente) no culminar de uma temporada aziaga e na agonia da perspectiva de mais um defeso escaldante com, pelo menos, três dúzias por semana de contratações «presas por detalhes».
Tudo isto é enervante, como sabem muito bem, mas tudo isto deixou de ter qualquer peso, qualquer importância no preciso momento em que Pedro Mantorras, no coração da área, ligeiramente descaído sobre a direita e apertado por um defesa dos azuis, recebeu uma bola que lhe ofereceu Balboa e, de primeira, como vem nos livros, catrapum!, de pé direito acertou-lhe em cheio (na bola) e acertou em cheio na baliza do Belenenses porque o guarda-redes nem se mexeu.
Aliás, o guarda-redes do Belenenses foi a única pessoa que naquele momento, naquele estádio, não se mexeu. Os demais presentes, e eram muitos milhares, pularam, gritaram, abraçaram-se, ajoelharam-se, cantaram, deitaram-se, ergueram as mãos aos céus e (assim que puseram as mãos para baixo) ligaram do telemóvel para os familiares e amigos que tinham ficado em casa a ver pela televisão.
— Viste? Viste?
— Vi, vi, está a dar a repetição.
— Como é que foi o golo? Foi uma bomba, não foi? Como é que está a ser na repetição?
— Está a ser igualzinho só que é tudo mais devagar. É em câmara lenta, percebes?
— Espectáculo, isto sim, é a alegria do povo!
— Espectáculo é a cara do Quique, se tu visses.
— Eu daqui, do meu lugar, só lhe vejo as costas.
— Está a dar agora na televisão e também em câmara lenta. O homem nem quer acreditar, não se percebe se vai ter um ataque de choro ou um ataque de riso.
Pronto. Acabou assim em festa rija a época de 2008/2009 no Estádio da Luz.
Ninguém diria que o Benfica tinha perdido o campeonato. Pedro Mantorras é o culpado deste transe único no panorama do futebol mundial, o que se compreende porque há muito que a pérola angolana deixou de ser um jogador de futebol e passou a ser uma experiência de índole religiosa que se repete uma vez por cada estação do ano.
Portanto há benfiquistas que vão ao estádio e há benfiquistas que ficam em casa e vêem os jogos na televisão. Todos são bons chefes de família.
No último jogo da época, alguns dos que ficaram em casa a ver pela televisão viram coisas que os surpreenderam imensamente. Como, por exemplo, um conhecido meu que, sentado no sofá da sua sala de estar, nem queria acreditar quando, no final do jogo, viu um conhecido seu (que ao longo de toda a época nunca parou de dizer mal do treinador, precisamente) em grande plano, a pedir autógrafos a Quique Flores e a dar-lhe palmadinhas nas costas a pedir que ficasse.
Não se aguentou e pegou logo no telemóvel.
— Ouve lá, já és amigo do Quique, já lhe pedes autógrafos?…
— Como é que sabes?
— Vi-te agora mesmo em directo. É preciso ter lata, depois do mal todo que disseste do homem durante meses a fio…
— O homem convenceu-me nestas duas últimas jornadas, essa é que é essa…
— Mas convenceu-te porquê?
— Porque foi muito inteligente na gestão do plantel e na gestão dele próprio e eu acho que o Benfica precisa de activos inteligentes, para além de que é muito caro despedi-lo e temos de ter em atenção sempre a saúde financeira do clube.
— Mas foi inteligente como?
— Em primeiro lugar deu, finalmente, confiança ao Cardozo e o rapaz correspondeu marcando um golo em cada jogo. Depois em Braga deu um banho táctico ao Jorge Jesus e não teve medo de mandar vir com o árbitro, que é uma coisa que a malta gosta sempre de ver, e até foi expulso do banco que é uma coisa que revela que é um lutador na defesa do grupo e um líder natural.
— Passaste a época toda a dizer que o homem não tinha liderança nenhuma…
— Pois foram precisas as duas últimas jornadas para que o próprio Quique me desmentisse. É um líder! Não vês como todos os jogadores o defendem?
— Mas tu não sabes que as homenagens em Portugal são sempre contra alguém?
— Mas contra quem? Só se forem homenagens contra o Pedro Proença, esse sim é que foi um anti-Quique primário.
— Mas disseste-me que qualquer treinador atrevido tinha ganho aquele jogo no Porto, com árbitro ou sem árbitro…
— Ah, não me lembro nada de ter dito isso. Depois o Quique é um treinador que sabe apostar na juventude e não tem medo de arriscar.
— Eu nem acredito no que estou a ouvir. Chamaste-lhe os nomes todos depois de termos levado cinco do Panathinaikos por ele ter tido medo de uma equipazinha grega.
— O Panathinaikos é um grande do futebol europeu.
— Só se for também nestas duas últimas semanas.
— Cala-te, estás sempre a dizer mal de tudo!
— Eu? Passei a época toda a mandar-te calar.
— Olha, o golo do miúdo Urreta em Braga e o golão do miúdo Fellipe Bastos contra o Belenenses são um atestado de competência do nosso treinador. O Benfica tem de saber olhar para a sua juventude.
— Mas o homem só olhou nas duas últimas jornadas!
— E isso o que interessa? Não sabes que as últimas impressões são as mais duradouras? Olha, por exemplo, eu acabo a época encantado com o Balboa, foi muito bem comprado, jogou maravilhosamente nos últimos dez minutos e o passe que fez para o Mantorras foi de génio.
— Passaste o ano a dizer que o Quique devia pagar o ordenado do Balboa do seu próprio bolso…
— Foi uma excelente contratação! E aquela educação do nosso treinador no final do jogo, a cumprimentar os sócios do Benfica, olha que me comoveu…
— Aí, sim, foi mesmo muito inteligente o nosso Quique. Cada autógrafo que dava aumentava o valor da indemnização.
— Qual indemnização? Nem pensar…
E continuaram nisto pela noite dentro. Vamos lá ver se vão continuar nisto pelo defeso dentro.
Por Leonor Pinhão - Jornal "A Bola", Edição 28 de Maio 2009

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